Paraísos dominados: facções criminosas transformam destinos turísticos do Nordeste em zonas de controle e negócios milionários


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Da Redação

Coqueiros, mar cristalino, gastronomia exuberante e turismo vibrante. É esse o retrato estampado nos cartões-postais de destinos como Porto de Galinhas (PE), Pipa (RN) e Jericoacoara (CE) — verdadeiras joias do litoral nordestino. Mas sob essa superfície paradisíaca, esconde-se uma realidade perturbadora: o domínio crescente de facções criminosas, que transformaram essas vilas turísticas em centros de comércio de drogas, controle social e violência extrema.

Segundo reportagem publicada pela BBC News Brasil, assinada por Vitor Tavares e Role, esses três destinos passaram a ser vistos como verdadeiros “filiais” do crime organizado, operando sob a lógica empresarial do tráfico. O Estado, enquanto poder público, praticamente se ausenta — e onde ele falha, o crime ocupa espaço, impondo regras e cobrando fidelidade.

 O paradoxo da tranquilidade armada

Curiosamente, para o turista comum, a experiência muitas vezes permanece pacífica. Isso porque as facções, conscientes da importância econômica do turismo, impõem leis internas que proíbem roubos e brigas nas áreas centrais. A lógica é simples: manter o fluxo de dinheiro constante, evitar operações policiais e preservar o “negócio”.

Mas para os moradores, a vida é bem diferente.

É normalizado. Você sabe quem é o olheiro, o pistoleiro ou o gerente da boca. Interage com eles no mercado, nos bares”, relata Ricardo, morador de Porto de Galinhas.

 Porto de Galinhas: a vitrine do Comando do Litoral Sul

Em Ipojuca, onde se localiza Porto de Galinhas, a facção Trem Bala, também conhecida como Comando do Litoral Sul, domina amplamente as comunidades de Salinas, Socó e Pantanal. Câmeras instaladas pelos próprios criminosos monitoram entradas e saídas, e agentes públicos precisam abaixar os vidros dos carros e se identificar para acessar algumas áreas.

Apesar dos baixos índices recentes de homicídios, a explicação está longe de indicar segurança: não há mais disputa territorial, o que reduz os confrontos. Quem viola as regras impostas pela facção sofre punições brutais. O "tribunal do crime" local já aplicou punições como decapitações com escopetas, e a Polícia Civil encontrou cemitérios clandestinos em áreas de mangue.

O tráfico movimenta cifras milionárias. Uma caderneta apreendida revelou a movimentação de quase R$ 10 milhões por ano. O grupo possui ligações com o Comando Vermelho e também negocia com o PCC, segundo inquérito ao qual a BBC teve acesso.

 Pipa: tráfico organizado e salários fixos


No município de Tibau do Sul (RN), onde fica a famosa praia de Pipa, o Sindicato do Crime — facção originária do Presídio de Alcaçuz — atua de forma altamente organizada.

O tráfico é estruturado com funções específicas: os "vapores", responsáveis por transportar as drogas; e os "visões", que monitoram o movimento nas esquinas. Jovens de áreas pobres trabalham com escalas e recebem salários fixos, além de pagar mensalidades ao grupo.

O tráfico chegou a operar uma “lojinha” em galeria comercial, fechada em operação recente. Segundo investigadores, o grupo possui até um estatuto com 21 artigos, que regula a conduta dos membros e proíbe, por exemplo, uso de crack e até de Rivotril sem receita médica.

O triplo homicídio ocorrido em dezembro de 2024, na principal rua da vila, expôs a fragilidade da segurança. Segundo a Polícia Civil, o caso foi uma tentativa de entrada de um grupo rival — rapidamente neutralizado.

Você se sente observado o tempo todo. Mas se fala pouco. Quem fala demais, some”, diz Cláudia, moradora local.

 Jericoacoara: quando o paraíso muda de rosto


Em Jericoacoara, no Ceará, a situação se agravou após o assassinato de um turista de 16 anos, confundido com integrante de facção rival. O crime foi atribuído ao Comando Vermelho, que domina a vila.

Moradores relatam que, até aquele episódio, havia um acordo para manter turistas protegidos. Mas o aumento da violência indicava que o controle estava saindo das mãos dos líderes. Segundo o pesquisador Artur Pires, da UFC, o crescimento das facções no Ceará está ligado a uma expansão deliberada do modelo empresarial do crime, aliado à demanda do novo perfil de turista.

Antes era turismo sustentável. Agora é turismo de sexo, drogas e rock’n’roll”, diz Carla, moradora da vila.

A mudança no perfil turístico trouxe consigo a explosão no uso de drogas e a atuação ostensiva do tráfico, que passou a “oferecer” aquilo que muitos turistas vinham buscar.

Além da violência explícita, Jericoacoara lidera também em infrações ambientais, resultado direto da urbanização descontrolada e da omissão do poder público.

 Entre o lucro e o medo: a ausência do Estado

A ausência de investimentos em infraestrutura social e segurança é um denominador comum entre os destinos afetados. Porto de Galinhas, por exemplo, tem o maior PIB per capita de Pernambuco, mas está apenas na 92ª posição em taxa de escolarização no Estado.

“É uma mão de obra extremamente barata para o tráfico. Crianças sem sonhos, sem alternativas”, lamenta o promotor Eduardo Leal dos Santos.

Enquanto as operações policiais combatem os sintomas, a causa — vulnerabilidade social, exclusão e ausência do Estado — permanece intocada. Em muitas situações, a repressão acaba reforçando o domínio de uma facção, ao eliminar rivais e consolidar o poder de quem já está no topo.

Paraísos em disputa

As praias mais famosas do Nordeste brasileiro tornaram-se zonas de silêncio e vigilância, onde a beleza natural contrasta com o medo cotidiano. Um sistema paralelo dita regras, julga, pune e — ao seu modo — “protege”.

Essas vilas paradisíacas são hoje postos avançados de um modelo criminal empresarial, altamente lucrativo, que não sobrevive sem conivência, omissão e — em muitos casos — demanda.

É um retrato alarmante de um país onde a beleza é vendida como produto turístico, enquanto sua população convive com o medo, a precariedade e a violência institucionalizada.

Créditos

Reportagem original por Vitor Tavares e Role, publicada pela BBC News Brasil.

Todos os nomes de moradores foram alterados para garantir sua segurança.

 

 

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