Por Juan Francisco Alonso – BBC News Mundo
No final do século 19, em várias cidades dos Estados Unidos, um conjunto de leis inusitadas — e hoje consideradas profundamente discriminatórias — passou a criminalizar algo que jamais deveria ser motivo de punição: a aparência física. Conhecidas como "leis da feiura", essas regulamentações proibiam que pessoas com certas características físicas, vistas como "repulsivas" ou "desagradáveis", circulassem em locais públicos.
Origem e objetivo das leis
A primeira dessas medidas foi aprovada em São Francisco, em 1867, criminalizando qualquer pessoa “doente, mutilada ou deformada de forma a se tornar um objeto repulsivo” nos espaços públicos. Em pouco tempo, cidades como Reno, Portland, Lincoln, Columbus, Chicago, Nova Orleans e até o estado da Pensilvânia adotaram leis semelhantes.
O pretexto era “manter a feiura fora das ruas” e, supostamente, proteger a saúde pública. Algumas crenças da época — como a “influência materna”, que afirmava que uma grávida poderia ter um bebê doente se visse uma pessoa mutilada — eram usadas para justificar essas medidas.
Contudo, especialistas como a professora Susan Schweik, da Universidade de Berkeley, afirmam que o objetivo real era afastar das áreas centrais os pobres, mendigos e pessoas com deficiência, que frequentemente sobreviviam da mendicância ou do comércio ambulante.
Punições e exclusão social
As penalidades variavam entre multas e prisão, forçando muitos a viverem em asilos ou instituições de caridade, numa espécie de prisão perpétua não oficial. Até artistas de rua e vendedores ambulantes eram atingidos.
Casos emblemáticos mostram a severidade da aplicação: em 1910, em Cleveland, um vendedor de jornais com mãos e pés lesionados foi proibido de trabalhar. Em Portland, uma vendedora apelidada de “Mother Hastings” foi considerada “terrível demais para as crianças verem” e obrigada a deixar a cidade.
Conexão com outras formas de discriminação
Essas leis se entrelaçaram com outros dispositivos discriminatórios do período, como as leis de segregação racial e as normas eugênicas que permitiam a esterilização forçada de pessoas com deficiência. Embora a estética fosse o argumento de fachada, o foco principal era o controle social e a exclusão econômica.
Nem figuras públicas de prestígio, como o presidente Franklin Delano Roosevelt, que usava cadeira de rodas após contrair poliomielite, eram vistas como alvo direto dessas leis — porque a perseguição recaía majoritariamente sobre quem não tinha recursos para se “esconder” da vista pública.
O fim das leis (mas não da mentalidade)
Apesar de seu uso ter diminuído no início do século 20, muitas “leis da feiura” permaneceram oficialmente ativas até a década de 1970. O movimento pelos direitos das pessoas com deficiência e casos midiáticos, como o de um sem-teto em Omaha, ajudaram a derrubá-las.
Em 1990, a aprovação da Lei dos Americanos com Deficiência (ADA) proibiu formalmente a discriminação contra pessoas com deficiência, tornando essas antigas portarias obsoletas.
No entanto, como apontam especialistas, o espírito dessas leis ainda persiste. Hoje, em vez de decretos, cidades usam táticas sutis de exclusão, como bancos e grades que impedem que pessoas sem-teto permaneçam ou durmam em locais públicos.
Um legado incômodo
A história das “leis da feiura” revela como políticas públicas podem ser moldadas para mascarar preconceitos sob a aparência de ordem e saúde pública. E, embora tenham sido revogadas, elas deixaram cicatrizes profundas na sociedade, influenciando até hoje o modo como pessoas com deficiência e sem-teto são tratadas.
Como conclui Susan Schweik, “a cultura das leis da feiura ainda está viva — apenas se adaptou a novos tempos e métodos”.
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