Da Redação
Num terraço
ensolarado, cercado por amigos e flores, um homem prestes a morrer segura as
mãos da médica, olha em seus olhos e diz: “Dra. Green, pode parecer loucura,
mas acho que você salvou minha vida. Obrigado.” Momentos depois, Stefanie Green
injeta os medicamentos que levarão aquele paciente à morte — com serenidade,
dignidade e amor. O que para muitos soa como um paradoxo, para ela é a própria
essência da medicina: ajudar.
Essa cena marcante é
uma entre centenas vividas pela médica canadense Stefanie Green, autora do
livro This is Assisted Dying ("Isto é Morte Assistida"). Hoje,
ela é referência mundial no campo da morte assistida no Canadá, país onde esse
tipo de procedimento é legal desde 2016, inicialmente para pacientes terminais
e, desde 2021, também para casos não terminais com sofrimento insuportável.
Para 2027, está prevista a ampliação da lei para incluir pacientes com
transtornos mentais graves.
Da sala de
partos à despedida final
Stefanie Green tem
56 anos. Começou sua carreira na medicina como clínica geral e, posteriormente,
passou a atender mulheres grávidas, acompanhando partos e recém-nascidos.
Durante mais de duas décadas, foi testemunha de incontáveis nascimentos.
Parecia improvável que trocaria o início da vida pelo seu fim.
Mas a mudança veio
quando, esgotada pelos longos plantões e buscando mais tempo com os filhos
adolescentes, Green viu no novo marco legal canadense uma possibilidade de
exercer uma medicina centrada no paciente — e baseada na autonomia e na
dignidade. “Resisti muito à ideia de sair da maternidade. Era algo
profundamente recompensador. Mas percebi que poderia aplicar as mesmas
habilidades de compaixão, escuta e cuidado na jornada inversa: a da morte.”
Como é uma
morte assistida?
Green explica que há
dois métodos legais no Canadá. O primeiro, menos comum, é a autoadministração
oral de barbitúricos. O segundo, majoritário, é a aplicação intravenosa feita
por um médico, com quatro medicamentos: um ansiolítico para relaxar, um anestésico
local, um anestésico geral em dose elevada e, por fim, um bloqueador
neuromuscular.
O processo é envolto
em cuidado, rituais e consentimento. “Passo tempo com o paciente antes,
reavalio seu desejo, explico o que vai acontecer, dou espaço para despedidas e,
se ainda quiserem seguir, administro os remédios. Morrem serenamente, com
dignidade e cercados de amor”, diz Green.
O procedimento só é
autorizado após um rigoroso processo de avaliação. Os pacientes devem ter mais
de 18 anos, estar aptos a consentir, possuir doença grave e irreversível, e
viver sofrimento que considerem intolerável. A médica acompanha todo o processo
e, após a morte, presta apoio à família.
O impacto
emocional e ético
Stefanie não nega a
carga emocional de sua profissão. “Como não se comover ao ver alguém morrer?
Vejo cenas de despedida tão intensas, de amor tão profundo, que muitas vezes
choro. Sou humana.” Mas, afirma com convicção, não se sente mal por realizar
esse trabalho. “Durmo bem à noite. Sinto que estou fazendo algo significativo,
que respeita e alivia o sofrimento.”
O caso que mais a
marcou foi seu primeiro paciente, Harvey, que chegou até ela com os papéis em
mãos dias após a legalização. “Foi um passo no escuro. Eu não tinha colegas
para me orientar. Mas me senti profundamente honrada por estar naquele momento
tão íntimo.”
Respostas às
críticas
Embora cerca de 75%
dos canadenses apoiem a morte assistida, o tema permanece controverso. Green
enfrenta críticas de grupos religiosos, de defesa de pessoas com deficiência e
de especialistas em saúde mental. Ela responde com firmeza, mas sem militância:
“Não estou defendendo uma causa. Estou fazendo meu trabalho, dentro da lei do
meu país.”
Sobre o temor de que
pessoas com deficiência escolham a morte por falta de apoio do Estado, ela
concorda que os serviços públicos precisam melhorar. “Mas isso não é motivo
para negar o direito de pessoas competentes que sofrem gravemente.”
A médica também se
posiciona contra a ideia de que pacientes com transtornos mentais são incapazes
de tomar decisões. “Essa visão é antiquada e discriminatória. Cada caso deve
ser avaliado individualmente.”
O futuro da
morte assistida
O Canadá é hoje um
dos países com legislação mais liberal nesse campo. Em 2023, mais de 15 mil
pessoas passaram por uma morte assistida. A expansão da lei para incluir
exclusivamente doenças mentais é alvo de debates, e Green acredita que o número
ideal de procedimentos é aquele em que todos os pacientes legalmente elegíveis
consigam acesso — nem mais, nem menos.
No Brasil, a
eutanásia e o suicídio assistido continuam proibidos. A ortotanásia — a
interrupção de tratamentos fúteis em pacientes terminais — é a única forma
legal de aliviar o sofrimento no fim da vida.
Conclusão
A história de
Stefanie Green é um testemunho poderoso sobre os limites e possibilidades da
medicina contemporânea. De parteira a acompanhante da última respiração, ela
nos convida a repensar o papel do médico: não como um deus que salva a qualquer
custo, mas como um guardião da dignidade — da vida e da morte.
Green diz que
aprendeu a enxergar o fim da vida com mais compaixão e menos medo. “O que mais
me comove não é a morte. É o amor. É a coragem. É a beleza das despedidas.”
Essa matéria é
baseada em artigo publicado por Mônica Vasconcelos na BBC News Brasil
Deixe o seu
comentário
0 Comentários